sexta-feira, 20 de julho de 2007

contestação

Pois que aqui me prostro perante o caríssimo, nú e de ideias apenas feito. Na ânsia da troca e partilha embalado, mais não posso se não agradecer a sua existência, na certeza de um dia destronar a gaveta, aliás sua prezada, onde confina os seus pensamentos.

Desmistificar o casamento em todos os sentidos da palavra, e principalmente atingir o objectivo de traçar a essência dos limites ao mesmo não pode ser assim tão difícil, caro amigo. Tarefa assaz trabalhosa, é certo, a honra de com o meu caro privar e esgrimir argumentos torna vívida a mais leda consciência.

E porque assim o é, antes friso que nada tenho contra o casamento per si. A união de duas existências por critérios não raras vezes alheios à Razão, merece respeito pois no ímpeto reside o íntimo.

O caro amigo propugna, no brilhantismo da sua retórica, a solução segundo a qual o casamento deve ser visto como a "relação entre duas pessoas de quem nutre um sentimento de união recíproca, em que os sentimentos dão azo a uma vida em comum de partilha e enlace onde se aliam os desejos carnais com o inqualificável quimera que se baseia no fantasio romanceio que é amar".

Assaz interessante, meu caro, é o seu frisar da quimera e do fantasio como se, em essência, duvidasse da certeza rígida e sólida com a qual afirma o sentimento de si. Afirma-o como se, em intimidade, duvidasse do Amor optando, não obstante, por o afirmar. Paradoxal? Não, de todo!! É apenas a típica benção que paira sobre os românticos: aquela de toldar a Razão e fazer cair sobre eles o fino e confortável véu da ignorância.

Adiante que agora devaneios não colhem.

Opõe-nos a premência do valor FIDELIDADE na sua vertente de limite conjugal. O caro amigo embarca no equívoco mundano que identifica Fidelidade com Sexualidade. São dois universos distintos embora, na conjugalidade, possam ter, é certo, zonas nebulosas de sobreposição.

A SEXUALIDADE, enquanto prática humana telúrica, inata,imanente e natural, radica na própria essência animal da individualidade. Os ímpetos procriativos, mais ou menos animados pelo hedonismo de vertente sexual, estão no cerne do nosso volitivo instinto sexual. A sexualidade é, pois e em essência, uma obra em bruto ainda por trabalhar, cujos critérios surgem apenas a jusante, definidos pelo amadurecer de padrões normativos sociais e morais. A sua vivência é, por definição, independente de qualquer critério reflexivo ou meramente sentimental: assim o é na Natureza onde, com a benção dos tempos e da lógica imemorial, as bestas copulam movidas apenas pelos instintos mais básicos.

A FIDELIDADE, por seu turno, é um valor-fruto de um dado amadurecimento moral da sociedade. A sua origem está fortemente ligada a critérios religiosos e de sustentabilidade económico-social. No domínio religioso em geral a monogamia é vista como forma de um dos cônjuges ter capacidade de sustento do outro cônjuge. Assim o é no Cristianismo onde "não cobiçar a mulher do próximo" traduz mais uma premissa de manutenção de um certo status quo social - rectius segurança no trato social -do que propriamente uma defesa suprema dos vínculos amorosos eventualmente existentes; Assim o é, também, no Islamismo onde a monogamia é derrogada sempre que o elemento masculino possa sustentar mais que uma mulher. A monogamia não se fica por aqui. Assim o era, por exemplo, na mitologia clássica de explicação da Razão das Cousas: Urano unira-se somente a Geia, o Céu e aTerra, para dar ao Universo seus filhos Cronos e Témis, o Tempo e a Justiça.

Este ideário de perfeição monogâmica é - insisto - uma construção valorativa que nada deve à ratio essendi das cousas. É, tão somente, a ânsia criativa do homem na vontade de enformar as sociedades, tipificando comportamentos e, concomitantemente, estabelecendo o correcto e o errado, o Bem e o Mal, o Justo e o Injusto, buscando-se na previsibilidade e certeza das actuações dos indivíduos a segurança necessária à subsistência de uma sociedade.

Acresce a este vontade de segurança e previsibilidade social, o pânico do indivíduo pelo fortuito, pelo desconhecido e pelo ocaso da sua existência. A solidão, indelével certeza com que Cronos nos baptizou, joga aqui o papel de catalisador do receio, empurrrando o ser na busca de certezas mesmo que toldadoras da Liberdade. A morte combate-se na certeza de alguém se lembrar de nós e nos chorar a perda, na fidelidade de um sentimento.

E ei-lo, meu caro, assaz cristalino o fio condutor do meu raciocínio: é ao sentimento que importa lealdade e fidelidade. E, no campo do sentir, as emoções extravazam em muito o mero prazer carnal. Sobrestimar o aspecto sexual é subestimar aquilo que em nós 'stá sentindo.

SONETO DA FIDELIDADE


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

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